terça-feira, 3 de março de 2015

Processo de Isabela ou a Vitória do Senso Comum do Politicamente Correto



Uma moça chamada Isabela Cardoso, que vivia na cidade de Gramado, no Rio Grande do Sul, acompanhou o seu esposo para a cidade de Imperatriz no Maranhão. Ao retornar para a sua cidade, depois de 1 ano e 8 meses morando em terras maranhenses, ela escreve a sua impressão do local no Facebook:

"Finalmente em casa, depois de 1 ano e 7 meses na SUSANO de Imperatriz eu e meu esposo retornamos a nossa cidade. Estado pobre kkkkkkkkk. A cultura maranhense é horrível, o carnaval é um lixo 'Tal de bomba meu boi (sic), tambor de crioula'. A maioria das mulheres são piriguetes e os Homens malandros. Mais da metade das pessoas são semi-analfabetos (sic) #AmoMinhaCidade #Gramado RS"

Por expor a sua opinião sobre o local, ela será processada por “crime de ódio” contra o Maranhão e seu povo. Seu marido foi mandado embora da empresa que trabalhava, a Suzano Papel, e sua vida foi exposta ao ponto de estar sendo perseguida nas redes sociais.

O que está em jogo nessa questão da Isabela dizer o que pensa sobre o Maranhão não é a enunciação de um comentário supostamente preconceituoso, mas sim a criminalização da opinião, da qual posamos concordar ou discordar. O mecanismo dessa criminalização segue a lógica da “luta de classes”, onde o mais pobre é invariavelmente explorado pelo mais rico. A moça por ser da região sul, a mais rica do país, não tem o direito de ter uma opinião adversa em relação ao norte ou nordeste, principalmente do Maranhão, o Estado mais pobre da Federação, pois se trata de preconceito contra os mais pobres. Se não gostar nem do carnaval e da cultura local, ou mesmo não sentir simpatia pelo povo, se trata de uma “alienada” e “elitista” que deve ser publicamente punida.

                                                   Tambor de Crioula, tradição maranhense

Tal mentalidade tem se tornado um senso comum, incentivado pela academia onde o “estudo dos oprimidos” tem sido dominante nas humanidades. Tais estudos são de suma importância para o entendimento mais amplo das sociedades diversas no decorrer do tempo histórico, porém, a sua vulgarização, feita principalmente por professores de História e Geografia nas escolas de ensino básico (que no geral mal leem livros além das xerox que tiveram que ler para as matérias de seus cursos e do material didático para poder ministrar suas aulas) por motivos ideológicos tem trazido efeitos colaterais nocivos. Sem muita reflexão e estudo, graças à essas ferramentas trazidas por esses professores, qualquer aluno relapso de Ensino Fundamental consegue se achar as raízes dos males do mundo. Em um binarismo desconcertante e tosco, divide-se o mundo entre os opressores e oprimidos, sendo que esses últimos são eternamente inocentes e possuem a verdade libertadora do mundo. Nessa visão esquemática de mundo, consegue-se pensar ser intelectual sem muito esforço ou analisar as relações complexas que existem dentro de um sistema de poder e dominação (nem todo sistema de poder corresponde à dominação, como querem crer os esquerdistas).

Agora, a condenação de opiniões negativas referente à regiões do país não são igualitárias. Falar mal de São Paulo e de seus habitantes não costuma causar comoção. Pois como é o Estado mais rico da Federação, com certeza são os “opressores” e merecem toda a condenação possível. O tumblr “Esses Paulistas...” reúnem algumas referências nada lisonjeiras que fizeram à São Paulo, como desejando que os paulistas morram de sede, acusando-os de serem “escória” e lhes desejando a morte. Tais comentários dirigidos aos paulistas, muito mais fortes e graves do que os feitos por Isabela sobre os maranhenses, de acordo com a ótica dos nossos campeões humanistas, não merecem repulsa alguma, pois São Paulo, somente pelo fato de ser rico, é naturalmente opressor, portanto, se trata de “justiça social”. O processo contra Isabela marca a vitória da criminalização da opinião não por uma ditadura, mas por uma censura tácita do “politicamente correto”, que por trás do seu discurso de defesa da pluralidade, quer impor uma opinião, mentalidade e discurso único, e o que foge disso, deve ser punido com exclusão social. Nada mais autoritários do que aqueles que pregam a imposição do discurso da diversidade. Que a democracia seja salva dessa praga que a arruína e a carcome sem ao menos percebermos.


Luís XIV e Kangxi: Os Déspotas Esclarecidos

                                                   Luis XIV e Kangxi



Isabelle e Jean-Louis Vissère 

Luís XIV e toda a elite francesa eram fascinados pela China, esse país longínquo cheio de lendas propagadas por antigos viajantes, como Marco Polo. Um interesse reavivado, em sua época, pelos testemunhos de missionários como o padre Ricci, que, tendo chegado a Pequim no início do século XVII, soube ganhar a confiança do imperador. Já os progressos da navegação e do comércio permitem doravante a uma clientela abastada adquirir tecidos, laca, pinturas em papel e porcelanas do Oriente – em outras palavras, ver e tocar a realidade dessa terra fabulosa. A moda “à chinesa” invade tudo. O rei não resiste: manda construir o efêmero Trianon de porcelana para sua favorita Madame de Montespan e coleciona centenas de peças do mesmo material. Para além das fantasias, o rei conduz, desde o início de seu reinado, uma política de abertura, voluntarista e apaixonada, em direção à China e a seu imperador, Kangxi.




Nos anos 1684-1685, sucedem-se acontecimentos inesperados que o jovem monarca vai muito habilmente explorar, seguindo os conselhos de seu entourage. Colbert, poderoso secretário de Estado da Marinha, queria desenvolver o intercâmbio comercial. Seu sucessor, o marquês de Seignelay, precisa melhorar as cartas náuticas e definir a marcação de pontos de referência longínquos. O padre de La Chaise, confessor do rei, quer implantar missões jesuítas no Oriente. Uma política de implicações diplomáticas, comerciais e religiosas consideráveis: a supremacia dos mares (disputada por portugueses, holandeses e ingleses) e a extensão do cristianismo na metade oriental do globo. E o foco era essa China longínqua, rica de tantas possibilidades para um rei ávido por conquistas e glória.



                                                 Jean-Baptiste Colbert, ministro de Luis XIV

Em 15 de setembro de 1684, Luís XIV recebe em Versalhes um missionário jesuíta flamengo, o padre Couplet, que passou anos na corte de Pequim. O religioso deseja reforçar as missões na China, mas também levar ao país conhecimentos científicos do Ocidente. Kangxi precisa de um douto emérito para presidir o bureau imperial de astronomia.



Ora, Luís XIV criou em 1666 a Academia das Ciências, que reagrupa a elite do reino, e, no ano seguinte, o Observatório de Paris, dirigido por Cassini. Isso ilustra bem as preocupações comuns dos dois soberanos. Já dizia o padre Verbiest, em carta de 1681, “sob o manto estrelado da astronomia, nossa santa religião se introduz facilmente na China”.


COISAS RARAS E CURIOSAS”

Diplomata, Couplet se apresenta acompanhado de um jovem chinês convertido ao cristianismo, Michel Sin. Os cortesãos admiram seus trajes suntuosos, sua habilidade em comer com pauzinhos e, sobretudo, sua pia declamação em chinês de um pai-nosso e de uma ave-maria. Alimenta a curiosidade e a esperança de uma conversão massiva da China.



Em 27 de novembro do mesmo ano, chega uma embaixada de Sião (a atual Tailândia) a Brest; recepção solene em Versalhes, sem o fausto, todavia, que acompanhará a segunda embaixada, recebida com grande pompa em 1686. Voltaire, em O século de Luís XIV, sugerirá maliciosamente: “O extremo gosto que Luís XIV tinha pelas coisas que brilham foi ainda mais explorado pela embaixada que recebeu de Sião, país onde se havia ignorado até então que a França existisse”.



O rei de Sião necessita de cooperação técnica e científica e aceita receber missionários cristãos. A escolha de Sião pode parecer inesperada, mas já existem relações com esse país. Além disso, para contornar o fechamento da China aos estrangeiros, os navios vindos da Europa são obrigados a atracar primeiro onde se quer recebê-los (Macau, Sião, Cochinchina etc.), antes que seus passageiros cheguem a Pequim por meios próprios.




UMA PREPARAÇÃO RÁPIDA E DISCRETA

Assim, os embaixadores siameses oferecem à França a oportunidade esperada há tempos: enviar para a China missionários jesuítas. Luís XIV hesita, mas se deixa convencer por seus conselheiros (religiosos e eruditos) e acaba se envolvendo pessoalmente na aventura.



A expedição é preparada no maior segredo e com toda urgência, entre dezembro de 1684 e março de 1685. O monarca a financia com recursos pessoais. São armados dois navios, L’Oiseau La Maligne. A bordo, seis jesuítas matemáticos e, em seus porões, instrumentos de medição. Os doutos embarcados, escolhidos a dedo, são todos membros da Academia das Ciências. No comando, o padre de Fontaney, que ensinou matemática por um longo tempo no colégio Louis-le-Grand.



Os doutos chegam a Pequim em fevereiro de 1688: a viagem marítima correu bem, mas a passagem de Sião para a China foi repleta de dificuldades. O imperador os recebeu bem e, em 1693, pôs à sua disposição um terreno próximo a seu palácio para ali construírem uma casa, uma igreja e um observatório.



Esse grupo constitui o núcleo fundador da missão jesuíta na China. O mais insólito é ver esses estrangeiros instalados em Pequim, bem no coração da Cidade Proibida. Situação única que os jesuítas, como bons cortesãos, vão atribuir à política dos dois soberanos.



                                 Desembarque da marinha francesa em Sião



Os jesuítas são os primeiros a fazer conhecer a China, contribuindo para uma aproximação ao menos virtual não apenas dos dois povos, como também, mais estranhamente, dos dois monarcas. Muito rapidamente é estabelecido, tanto nos textos como nas representações artísticas (estampas ou tapeçarias), um paralelo entre os dois soberanos. À exceção do paganismo de Kangxi, tudo parece aproximar os dois homens. Seus reinos são estritamente contemporâneos; sua história, idêntica: eles são sagrados muito jovens, após uma regência difícil. Seu amor pelas artes e pela ciência, como também sua sabedoria política, faz deles o que se chamará em breve de “déspotas esclarecidos”.



A título de exemplo, eis a dedicatória que o padre Bouvet redige para apresentar a Luís XIV seu Retrato histórico do imperador da China (1697): “Os jesuítas que Vossa Majestade enviou, há alguns anos, ficaram surpresos em encontrar, no extremo da terra, o que nunca se tinha visto fora da França: um príncipe que, como Vós, Senhor, junta a um gênio tão sublime quanto sólido um coração ainda mais digno do Império, que é mestre de si mesmo como de seus súditos, igualmente adorado por seu povo e respeitado por seus vizinhos, um príncipe, em uma palavra, que, reunindo em sua pessoa a maioria das grandes qualidades que formam o herói, seria o mais realizado monarca que já reinou sobre a terra se seu reinado não concorresse com o de Vossa Majestade”. A lisonja é hábil, mas as qualidades podem ser consideradas fatos históricos.



Trocando retratos, como hoje se trocam fotos, os dois monarcas se encontram frente a frente, igualmente fascinados. O paralelo entre eles se desenvolve muito rapidamente. Kangxi chega a querer acentuar a semelhança, mandando fazer seu retrato à moda europeia por Gherardini, um pintor jesuíta dessa nova missão. As consequências dessa política mostram-se paradoxais e imprevisíveis. Se os jesuítas não conseguiram converter os imperadores e se suas descrições suavizam um tanto a realidade, contribuíram largamente para fazer conhecer por meio de seus escritos um país misterioso, no qual os filósofos, hostis ao absolutismo, encontrarão um modelo político: tolerância religiosa, despotismo esclarecido, respeito à agricultura, seleção das elites por concurso... Seria até mesmo possível afi rmar que, ao se apaixonar pela China, Luís XIV – involuntariamente – abalou o Antigo Regime.