Luis XIV e Kangxi
Isabelle e Jean-Louis Vissère
Luís XIV e toda a elite francesa eram fascinados pela China, esse país longínquo cheio de lendas propagadas por antigos viajantes, como Marco Polo. Um interesse reavivado, em sua época, pelos testemunhos de missionários como o padre Ricci, que, tendo chegado a Pequim no início do século XVII, soube ganhar a confiança do imperador. Já os progressos da navegação e do comércio permitem doravante a uma clientela abastada adquirir tecidos, laca, pinturas em papel e porcelanas do Oriente – em outras palavras, ver e tocar a realidade dessa terra fabulosa. A moda “à chinesa” invade tudo. O rei não resiste: manda construir o efêmero Trianon de porcelana para sua favorita Madame de Montespan e coleciona centenas de peças do mesmo material. Para além das fantasias, o rei conduz, desde o início de seu reinado, uma política de abertura, voluntarista e apaixonada, em direção à China e a seu imperador, Kangxi.
Nos
anos 1684-1685, sucedem-se acontecimentos inesperados que o jovem
monarca vai muito habilmente explorar, seguindo os conselhos de
seu entourage.
Colbert, poderoso secretário de Estado da Marinha, queria
desenvolver o intercâmbio comercial. Seu sucessor, o marquês
de Seignelay, precisa melhorar as cartas náuticas e definir a
marcação de pontos de referência longínquos.
O padre de La Chaise, confessor do rei, quer implantar missões
jesuítas no Oriente. Uma política de implicações
diplomáticas, comerciais e religiosas consideráveis: a
supremacia dos mares (disputada por portugueses, holandeses e
ingleses) e a extensão do cristianismo na metade oriental do
globo. E o foco era essa China longínqua, rica de tantas
possibilidades para um rei ávido por conquistas e glória.
Jean-Baptiste Colbert, ministro de Luis XIV
Em
15 de setembro de 1684, Luís XIV recebe em Versalhes um
missionário jesuíta flamengo, o padre Couplet, que
passou anos na corte de Pequim. O religioso deseja reforçar as
missões na China, mas também levar ao país
conhecimentos científicos do Ocidente. Kangxi precisa de um
douto emérito para presidir o bureau imperial
de astronomia.
Ora,
Luís XIV criou em 1666 a Academia das Ciências, que
reagrupa a elite do reino, e, no ano seguinte, o Observatório
de Paris, dirigido por Cassini. Isso ilustra bem as preocupações
comuns dos dois soberanos. Já dizia o padre Verbiest, em carta
de 1681, “sob o manto estrelado da astronomia, nossa santa religião
se introduz facilmente na China”.
“COISAS
RARAS E CURIOSAS”
Diplomata,
Couplet se apresenta acompanhado de um jovem chinês convertido
ao cristianismo, Michel Sin. Os cortesãos admiram seus trajes
suntuosos, sua habilidade em comer com pauzinhos e, sobretudo, sua
pia declamação em chinês de um pai-nosso e de uma
ave-maria. Alimenta a curiosidade e a esperança de uma
conversão massiva da China.
Em
27 de novembro do mesmo ano, chega uma embaixada de Sião (a
atual Tailândia) a Brest; recepção solene em
Versalhes, sem o fausto, todavia, que acompanhará a segunda
embaixada, recebida com grande pompa em 1686. Voltaire, em O
século de Luís XIV,
sugerirá maliciosamente: “O extremo gosto que Luís
XIV tinha pelas coisas que brilham foi ainda mais explorado pela
embaixada que recebeu de Sião, país onde se havia
ignorado até então que a França existisse”.
O
rei de Sião necessita de cooperação técnica
e científica e aceita receber missionários cristãos.
A escolha de Sião pode parecer inesperada, mas já
existem relações com esse país. Além
disso, para contornar o fechamento da China aos estrangeiros, os
navios vindos da Europa são obrigados a atracar primeiro onde
se quer recebê-los (Macau, Sião, Cochinchina etc.),
antes que seus passageiros cheguem a Pequim por meios próprios.
UMA
PREPARAÇÃO RÁPIDA E DISCRETA
Assim,
os embaixadores siameses oferecem à França a
oportunidade esperada há tempos: enviar para a China
missionários jesuítas. Luís XIV hesita, mas se
deixa convencer por seus conselheiros (religiosos e eruditos) e acaba
se envolvendo pessoalmente na aventura.
A
expedição é preparada no maior segredo e com
toda urgência, entre dezembro de 1684 e março de 1685. O
monarca a financia com recursos pessoais. São armados dois
navios, L’Oiseau e La
Maligne.
A bordo, seis jesuítas matemáticos e, em seus porões,
instrumentos de medição. Os doutos embarcados,
escolhidos a dedo, são todos membros da Academia das Ciências.
No comando, o padre de Fontaney, que ensinou matemática por um
longo tempo no colégio Louis-le-Grand.
Os
doutos chegam a Pequim em fevereiro de 1688: a viagem marítima
correu bem, mas a passagem de Sião para a China foi repleta de
dificuldades. O imperador os recebeu bem e, em 1693, pôs à
sua disposição um terreno próximo a seu palácio
para ali construírem uma casa, uma igreja e um
observatório.
Esse
grupo constitui o núcleo fundador da missão jesuíta
na China. O mais insólito é ver esses estrangeiros
instalados em Pequim, bem no coração da Cidade
Proibida. Situação única que os jesuítas,
como bons cortesãos, vão atribuir à política
dos dois soberanos.
Desembarque da marinha francesa em Sião
Os
jesuítas são os primeiros a fazer conhecer a China,
contribuindo para uma aproximação ao menos virtual não
apenas dos dois povos, como também, mais estranhamente, dos
dois monarcas. Muito rapidamente é estabelecido, tanto nos
textos como nas representações artísticas
(estampas ou tapeçarias), um paralelo entre os dois soberanos.
À exceção do paganismo de Kangxi, tudo parece
aproximar os dois homens. Seus reinos são estritamente
contemporâneos; sua história, idêntica: eles são
sagrados muito jovens, após uma regência difícil.
Seu amor pelas artes e pela ciência, como também sua
sabedoria política, faz deles o que se chamará em breve
de “déspotas esclarecidos”.
A
título de exemplo, eis a dedicatória que o padre Bouvet
redige para apresentar a Luís XIV seu Retrato
histórico do imperador da China (1697):
“Os jesuítas que Vossa Majestade enviou, há alguns
anos, ficaram surpresos em encontrar, no extremo da terra, o que
nunca se tinha visto fora da França: um príncipe que,
como Vós, Senhor, junta a um gênio tão sublime
quanto sólido um coração ainda mais digno do
Império, que é mestre de si mesmo como de seus súditos,
igualmente adorado por seu povo e respeitado por seus vizinhos, um
príncipe, em uma palavra, que, reunindo em sua pessoa a
maioria das grandes qualidades que formam o herói, seria o
mais realizado monarca que já reinou sobre a terra se seu
reinado não concorresse com o de Vossa Majestade”. A lisonja
é hábil, mas as qualidades podem ser consideradas fatos
históricos.
Trocando
retratos, como hoje se trocam fotos, os dois monarcas se encontram
frente a frente, igualmente fascinados. O paralelo entre eles se
desenvolve muito rapidamente. Kangxi chega a querer acentuar a
semelhança, mandando fazer seu retrato à moda europeia
por Gherardini, um pintor jesuíta dessa nova missão. As
consequências dessa política mostram-se paradoxais e
imprevisíveis. Se os jesuítas não conseguiram
converter os imperadores e se suas descrições suavizam
um tanto a realidade, contribuíram largamente para fazer
conhecer por meio de seus escritos um país misterioso, no qual
os filósofos, hostis ao absolutismo, encontrarão um
modelo político: tolerância religiosa, despotismo
esclarecido, respeito à agricultura, seleção das
elites por concurso... Seria até mesmo possível afi
rmar que, ao se apaixonar pela China, Luís XIV –
involuntariamente – abalou o Antigo Regime.
Fonte: História Viva
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