terça-feira, 3 de março de 2015

Luís XIV e Kangxi: Os Déspotas Esclarecidos

                                                   Luis XIV e Kangxi



Isabelle e Jean-Louis Vissère 

Luís XIV e toda a elite francesa eram fascinados pela China, esse país longínquo cheio de lendas propagadas por antigos viajantes, como Marco Polo. Um interesse reavivado, em sua época, pelos testemunhos de missionários como o padre Ricci, que, tendo chegado a Pequim no início do século XVII, soube ganhar a confiança do imperador. Já os progressos da navegação e do comércio permitem doravante a uma clientela abastada adquirir tecidos, laca, pinturas em papel e porcelanas do Oriente – em outras palavras, ver e tocar a realidade dessa terra fabulosa. A moda “à chinesa” invade tudo. O rei não resiste: manda construir o efêmero Trianon de porcelana para sua favorita Madame de Montespan e coleciona centenas de peças do mesmo material. Para além das fantasias, o rei conduz, desde o início de seu reinado, uma política de abertura, voluntarista e apaixonada, em direção à China e a seu imperador, Kangxi.




Nos anos 1684-1685, sucedem-se acontecimentos inesperados que o jovem monarca vai muito habilmente explorar, seguindo os conselhos de seu entourage. Colbert, poderoso secretário de Estado da Marinha, queria desenvolver o intercâmbio comercial. Seu sucessor, o marquês de Seignelay, precisa melhorar as cartas náuticas e definir a marcação de pontos de referência longínquos. O padre de La Chaise, confessor do rei, quer implantar missões jesuítas no Oriente. Uma política de implicações diplomáticas, comerciais e religiosas consideráveis: a supremacia dos mares (disputada por portugueses, holandeses e ingleses) e a extensão do cristianismo na metade oriental do globo. E o foco era essa China longínqua, rica de tantas possibilidades para um rei ávido por conquistas e glória.



                                                 Jean-Baptiste Colbert, ministro de Luis XIV

Em 15 de setembro de 1684, Luís XIV recebe em Versalhes um missionário jesuíta flamengo, o padre Couplet, que passou anos na corte de Pequim. O religioso deseja reforçar as missões na China, mas também levar ao país conhecimentos científicos do Ocidente. Kangxi precisa de um douto emérito para presidir o bureau imperial de astronomia.



Ora, Luís XIV criou em 1666 a Academia das Ciências, que reagrupa a elite do reino, e, no ano seguinte, o Observatório de Paris, dirigido por Cassini. Isso ilustra bem as preocupações comuns dos dois soberanos. Já dizia o padre Verbiest, em carta de 1681, “sob o manto estrelado da astronomia, nossa santa religião se introduz facilmente na China”.


COISAS RARAS E CURIOSAS”

Diplomata, Couplet se apresenta acompanhado de um jovem chinês convertido ao cristianismo, Michel Sin. Os cortesãos admiram seus trajes suntuosos, sua habilidade em comer com pauzinhos e, sobretudo, sua pia declamação em chinês de um pai-nosso e de uma ave-maria. Alimenta a curiosidade e a esperança de uma conversão massiva da China.



Em 27 de novembro do mesmo ano, chega uma embaixada de Sião (a atual Tailândia) a Brest; recepção solene em Versalhes, sem o fausto, todavia, que acompanhará a segunda embaixada, recebida com grande pompa em 1686. Voltaire, em O século de Luís XIV, sugerirá maliciosamente: “O extremo gosto que Luís XIV tinha pelas coisas que brilham foi ainda mais explorado pela embaixada que recebeu de Sião, país onde se havia ignorado até então que a França existisse”.



O rei de Sião necessita de cooperação técnica e científica e aceita receber missionários cristãos. A escolha de Sião pode parecer inesperada, mas já existem relações com esse país. Além disso, para contornar o fechamento da China aos estrangeiros, os navios vindos da Europa são obrigados a atracar primeiro onde se quer recebê-los (Macau, Sião, Cochinchina etc.), antes que seus passageiros cheguem a Pequim por meios próprios.




UMA PREPARAÇÃO RÁPIDA E DISCRETA

Assim, os embaixadores siameses oferecem à França a oportunidade esperada há tempos: enviar para a China missionários jesuítas. Luís XIV hesita, mas se deixa convencer por seus conselheiros (religiosos e eruditos) e acaba se envolvendo pessoalmente na aventura.



A expedição é preparada no maior segredo e com toda urgência, entre dezembro de 1684 e março de 1685. O monarca a financia com recursos pessoais. São armados dois navios, L’Oiseau La Maligne. A bordo, seis jesuítas matemáticos e, em seus porões, instrumentos de medição. Os doutos embarcados, escolhidos a dedo, são todos membros da Academia das Ciências. No comando, o padre de Fontaney, que ensinou matemática por um longo tempo no colégio Louis-le-Grand.



Os doutos chegam a Pequim em fevereiro de 1688: a viagem marítima correu bem, mas a passagem de Sião para a China foi repleta de dificuldades. O imperador os recebeu bem e, em 1693, pôs à sua disposição um terreno próximo a seu palácio para ali construírem uma casa, uma igreja e um observatório.



Esse grupo constitui o núcleo fundador da missão jesuíta na China. O mais insólito é ver esses estrangeiros instalados em Pequim, bem no coração da Cidade Proibida. Situação única que os jesuítas, como bons cortesãos, vão atribuir à política dos dois soberanos.



                                 Desembarque da marinha francesa em Sião



Os jesuítas são os primeiros a fazer conhecer a China, contribuindo para uma aproximação ao menos virtual não apenas dos dois povos, como também, mais estranhamente, dos dois monarcas. Muito rapidamente é estabelecido, tanto nos textos como nas representações artísticas (estampas ou tapeçarias), um paralelo entre os dois soberanos. À exceção do paganismo de Kangxi, tudo parece aproximar os dois homens. Seus reinos são estritamente contemporâneos; sua história, idêntica: eles são sagrados muito jovens, após uma regência difícil. Seu amor pelas artes e pela ciência, como também sua sabedoria política, faz deles o que se chamará em breve de “déspotas esclarecidos”.



A título de exemplo, eis a dedicatória que o padre Bouvet redige para apresentar a Luís XIV seu Retrato histórico do imperador da China (1697): “Os jesuítas que Vossa Majestade enviou, há alguns anos, ficaram surpresos em encontrar, no extremo da terra, o que nunca se tinha visto fora da França: um príncipe que, como Vós, Senhor, junta a um gênio tão sublime quanto sólido um coração ainda mais digno do Império, que é mestre de si mesmo como de seus súditos, igualmente adorado por seu povo e respeitado por seus vizinhos, um príncipe, em uma palavra, que, reunindo em sua pessoa a maioria das grandes qualidades que formam o herói, seria o mais realizado monarca que já reinou sobre a terra se seu reinado não concorresse com o de Vossa Majestade”. A lisonja é hábil, mas as qualidades podem ser consideradas fatos históricos.



Trocando retratos, como hoje se trocam fotos, os dois monarcas se encontram frente a frente, igualmente fascinados. O paralelo entre eles se desenvolve muito rapidamente. Kangxi chega a querer acentuar a semelhança, mandando fazer seu retrato à moda europeia por Gherardini, um pintor jesuíta dessa nova missão. As consequências dessa política mostram-se paradoxais e imprevisíveis. Se os jesuítas não conseguiram converter os imperadores e se suas descrições suavizam um tanto a realidade, contribuíram largamente para fazer conhecer por meio de seus escritos um país misterioso, no qual os filósofos, hostis ao absolutismo, encontrarão um modelo político: tolerância religiosa, despotismo esclarecido, respeito à agricultura, seleção das elites por concurso... Seria até mesmo possível afi rmar que, ao se apaixonar pela China, Luís XIV – involuntariamente – abalou o Antigo Regime.


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