sábado, 20 de setembro de 2014

A Real Questão Por Trás do Referendo Escocês




Essa semana, o fato político mais relevante a nível mundial foi o referendo que ocorreu na Escócia, onde o povo iria decidir se permanecia parte do Reino Unido ou se tornariam independentes. A eleição foi especificamente bastante angustiante para todos os lados porque de acordo com as pesquisas, não se sabia quem poderia vencer nessa disputa, se era o sim (a favor da independência) ou o não, já que ambas as posições estavam bastante parelhas nas opiniões dos escoceses.

Muito se discutia a viabilidade ou não de uma Escócia independente. Questões práticas sobre a governação cotidiana e da geopolítica internacional foram levantadas: será que a União Europeia aceitaria o país rapidamente, dando exemplo indesejado a regiões separatistas na Europa, como Catalunha, Veneza e Valônia? Usariam a libra esterlina como moeda, o euro ou alguma moeda própria? E a segurança, ficaria o país vulnerável a um ataque terrorista?

Com o resultado sendo o “não”, o Reino Unido – ao menos por ora – permanece unido e a monarquia britânica com as suas possessões intactas. Mas o que realmente estava em jogo no referendo escocês era além dos prejuízos ou vantagens econômicas e políticas de uma possível independência escocesa, mas sim mostra um momento em que o conceito de Estado-Nação está sendo questionado.

Criado em fins de século XVIII com o advento da Revolução Francesa, o conceito de um Estado que está acima das juridições locais das comunidades, substituindo-as por normas dadas por um Estado centralizador. Bastante diferente do que ocorreu durante a Idade Moderna (séculos XV-XVIII), onde o modelo principal de governação era o das monarquias compósitas, onde os reis não tinham o poder centralizado em suas mãos, mas tinham que respeitar os poderes e instituições locais das comunidades que estavam sob a coroa. 

A função do rei era principalmente fazer com que a lei e a justiça local, muitas vezes vindas de tradições seculares das comunidades, fossem respeitadas, e essa era a condição para que fosse admitido que o monarca reinasse. Ou seja, nas monarquias da Idade Moderna, havia dentro de um reino uma pluralidade de jurisdições, leis e ordenações, muitas vezes contraditória entre si, que o monarca tinha que manter caso quisesse se manter no poder sem revoltas instigadas pela nobreza e o povo, que viam na violação dessas leis uma ameaça às suas liberdades (no sentido que a palavra tinha na Idade Moderna, que não era a liberdade individual, mas sim da comunidade) e privilégios.
Catalães apoiando independência escocesa

Com a criação do Estado-Nação, todo esse corpo de jurisdições locais será suprimido pela afirmação cada vez mais evidente do poder central, que agora não tem mais o papel de manter e legitimar as leis e hierarquias locais, mas sim legislar e administrar o país acima dos particularismos. Com a destruição lenta, e não sem grandes conflitos, das leis particulares de cada localidade, os novos Estados-Nações puderam criar a Constituição, que torna as leis válidas para todas as partes do território.

Esse processo coincidiu com a ascensão do liberalismo como ideologia política e uma variante do capitalismo, o que foi fundamental no avanço desse processo na medida em que para o liberal, a liberdade individual está acima da comunidade, dessa forma, os homens devem se fazer representar como indivíduos, não como coletividade. 

Dessa forma, o novo Estado-Nação, ancorado no tripé do liberalismo político e econômico, além do individualismo (embora durante o século XIX e XX tal modelo será sempre contestado e esse Estado conhecerá outras variantes ), vai se consolidar como um Estado defensor da liberdade individual e da política como reflexo das escolhas dos governados através da representantes eleitos. Liberdade individual, centralização e representação são as palavras chave para entender o Estado-Nação moderno.

No século XX, o Estado-Nação liberal foi contestado por movimentos anarquistas, comunistas e fascistas, porém, nos dois últimos, a idéia de centralização do Estado foi canalizado para uma ideia antiliberal, ou seja, contra as liberdades individuais e econômicas em prol do totalitarismo, porém, tais modelos foram derrotados e entramos no século XXI com um predomínio quase que absoluto do Estado-Nação nos moldes liberais.

Os movimentos separatistas, sempre ativos durante o século XIX e XX, ganharam mais força no século XXI com a crise econômica de 2008, o que fez diversos países europeus a questionar o modelo político sobre qual estavam assentados, e também o seu modelo econômico. Com isso, o apelo das comunidades locais voltou a ser bastante forte por toda a Europa. Na Bélgica, Flamengos e Valões não chegam a um acordo para a organização do seu país, sendo a unidade mantida apenas pela pessoa do rei. Na Espanha, a Catalunha, após ser esmagada a sua tentativa de saída da coroa espanhola no século XVII, em 1640, em 1715 e nos anos 1930 por Franco, agora tem um movimento mais consistente do que nunca pela independência. O país Basco idem, além de Veneza, na Itália, onde em um plebiscito informal, a população em sua maioria aprovou a secessão.



O que está em jogo por toda a Europa agora é a preservação do conceito de Estado-Nação e além disso, o modelo econômico globalizado vigente. Com uma política e economia cada vez mais mundializadas e geopolicamente integradas, o apelo de retorno ao conceito de nação original, ou seja, o conjunto da comunidade local, nunca pareceu tão forte nesses últimos dois séculos, e o plebiscito escocês não encerrou essa página, apenas abriu as possibilidades de diversas regiões da Europa, e mesmo do mundo (Kosovo, Curdos, Chechênia, Tibet, entre outras) pedirem secessão de seus países sem haver conflitos pelas armas, mas sim através da vontade popular. Isso que estamos vendo é um processo de, além de mudanças políticas, transformações econômicas, pois o capitalismo como conhecemos hoje está também em mutação, além de seus fluxos de circulação econômica, modificações que essas secessões territoriais podem vir a acelerar 

Isso tem um potencial de em pouco tempo redefinir as fronteiras do mundo. Será interessante acompanhar no que essa abertura de uma caixa de Pandora aberta pelos escoceses, que os governos do mundo gostariam de manter fechada, irá resultar.

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