Os Bêbados, de José Malhoa (1907)
Bebida acompanhou a formação da nossa nacionalidade, cumprindo importante papel na economia colonial e provocando a primeira revolta no Brasil contra o domínio português. Mais tarde, se tornaria símbolo da pátria independente antes de ser vilipendiada e superar a rejeição dos que veem o que é brasileiro como sinônimo de atraso
Dirley Fernandes
Presente nos mapas dos navegantes europeus desde fins do século XV, o Brasil foi quase esquecido nas primeiras décadas do século XVI pela Coroa portuguesa, que não dispunha nem de gente suficiente no Reino para uma obra de colonização no vasto território d’além-mar. Com isso, a costa brasileira era visitada indistintamente por aventureiros – italianos, holandeses, franceses, espanhóis... – que se dedicavam à coleta de pau-brasil, sempre negociando com os índios. A partir da terceira década do século, no entanto, uma circunstância especial ajudaria a definir o futuro lusitano das terras do Brasil: a necessidade de produzir mais açúcar, que alcançava naquele momento o status de “ouro branco”.
O uso do açúcar, até fins do século XV restrito à nobreza, tinha se disseminado por toda a Europa e atingido novas classes a partir do sucesso de sua cultura na ilha da Madeira, iniciada na primeira metade do Quatrocentos. Mas Funchal, capital da ilha, era um porto de relativamente fácil acesso, no qual muitos comerciantes de todas as nacionalidades negociavam a doce mercadoria, e se tornara de difícil controle para a Coroa. Isso, em muitas oportunidades, levava a um descontrole no abastecimento que afetava as cotações do produto. Além disso, o terreno do arquipélago era pedregoso e as propriedades tinham tamanho limitado, o que dificultava a cultura mais extensiva da cana. Convinha buscar novas terras que se prestassem a produzir o açúcar que era usado ao natural ou em conservas que encantavam, sobretudo, os flamengos.
A busca por novas áreas para desenvolver a cultura da cana-de--açúcar foi um dos fatores que levaram a Coroa portuguesa a procurar um modelo de povoamento para o Brasil, que tinha, ao longo de toda a sua costa, as condições favoráveis para que a gramínea vicejasse: altas temperaturas, solos ricos e fartura de água. Regiões como São Vicente, Pernambuco e o Recôncavo Baiano são muito rapidamente ocupadas por engenhos e vastas plantações.
A expedição de Martim Afonso que aportou em 1531 no Brasil, como se sabe, trouxe mudas de cana e especialistas agrícolas. E, muito provavelmente, trouxe um dos primeiros alambiques do Novo Mundo, talvez um que já tivesse produzido aguardente de uva, mel ou cana nas Canárias, ponto de passagem da esquadra do fidalgo e provável origem das primeiras mu das de cana dessa primeira iniciativa organizada de produção canavieira em larga escala no Brasil.
Numa das três regiões citadas acima – mais provavelmente São Vicente , se levarmos em conta o caminho feito pela cachaça nas décadas seguintes –, o processo da destilação que os ibéricos aprenderam com os árabes produziu, pela primeira vez, a aguardente de cana no Brasil.
Naquele momento, nada diferenciava aquela aguardente de outros destilados de cana que surgiam em outros pontos da América – como o rum, na Nova Inglaterra e no Caribe – ou das ilhas do Atlântico – o grogue de Cabo Verde. A cachaça só ganharia seu nome definitivo – de origem espanhola – e sua especificidade alguns séculos depois.
Claro que essa origem foi mitifi cada em lendas como a do melado esquecido no fogo e depois escondido do feitor, que fermentou e, após evaporar, condensou-se no teto do engenho e gotejou, dando origem à denominação “pinga”. Pior ainda a potoca que afirma ser o termo “aguardente” advindo de uma suposta ardência do líquido em contato com as feridas nas costas do escravo vítima do látego, quando se sabe que a expressão latina aqua vitae era de largo uso em todo o mundo latino ainda no Império Romano.
De todo modo, a cachaça firmou-se muito rapidamente no gosto popular dos “negros da terra” (índios), africanos e portugueses de estirpe popular ou degredados que formaram os primeiros núcleos de povoamento nas terras brasileiras. Era barata, sendo feita com uma pequena parcela do caldo ou da rapadura derivados da cana farta nas grandes plantações, e de relativamente fácil produção. Enquanto os fidalgos se entregavam ao vinho e à bagaceira vindos do Reino, o populacho das três raças se consolava com a cachaça enquanto o Brasil ia se formando.
Para dar conta desse consumo, as dezenas de engenhos em volta da baía de Todos os Santos e os de Pernambuco produziam a sua jeribita. Mas uma cidade se tornava sinônimo de cachaça: Paraty. Ali, os vicentinos que, segundo a hipótese mais provável, começaram a produção de cachaça em meados do século XVI nas terras do chamado Engenho dos Erasmos, fincaram no fim desse mesmo século ou no início do seguinte os primeiros alambiques que fi zeram a glória da bebida, aperfeiçoando suas técni-cas de produção. O porto do qual os navios partiam para a África e para o Reino e tropeiros e colonizadores se internavam na direção das Minas chegaria a ter, no século XVIII, em torno de cem fábricas de cachaça em funcionamento.
Em Paraty, negros chegavam da África e eram desembarcados e levados para a engorda no saco de Mamanguá, enquanto os navios eram carregados de cachaça – o pagamento preferido dos comerciantes da Costa da Mina e de Angola. Naquele momento, os africanos haviam se tornado também grandes consumidores de cachaça – o único destilado que conheciam –, o que muito preocupava a Coroa portuguesa.
Acossada pela concorrência da cachaça no Brasil e na África, e com o apoio de senhores de engenho que veem a cana dos pequenos produtores desviada da função de matéria-prima do açúcar para a valorizada cachaça, Lisboa baixa em 13 de setembro de 1649, a proibição do fabrico do “vinho de mel” em todo o Brasil (em 1635, uma primeira lei nesse sentido não havia “pegado” e fora esquecida).
O protesto dos fazendeiros, sobretudo os da província do Rio de Janeiro, que abasteciam Angola de cachaça até por não conseguir competir com o açúcar de melhor qualidade de Pernambuco, é for-te e a Coroa responde retirando a proibição, aumentando taxações, tornando a proibir e estabelecendo diversos obstáculos e regulações. Em 1659, o comércio de aguarden-te sob qualquer forma, é vetado, gerando protestos que culminam com a chamada Revolta da Cachaça, em 1660, quando, liderados por fazendeiros da região de São Gonçalo, o povo do Rio de Janeiro depõe o governador, então em viagem a São Paulo, obrigando a Câmara a dar posse a outro fidalgo.
A rebelião é sufocada com certa facilidade, depois que os paulistas negam seu apoio aos revoltosos, e seu líder, o produtor de cachaça Jerônimo Barbalho, é enforcado. Mas a Coroa não apoia a decisão do governador Salvador Correa de Sá e Benevides. Ele acabaria sendo chamado de volta a Lisboa e processado, enquanto a produção da cachaça, para deleite de fazendeiros, comerciantes e do povo em geral, era liberada sem restrições, “a fim de evitar novos problemas”.
A primeira rebelião popular da nascente nacionalidade brasileira contra o domínio português de que se tem notícia prefaciou o papel de símbolo da nacionalidade com que a cachaça seria brindada ao longo dos séculos seguintes. Com a descoberta do ouro, a branquinha subiria a serra do Mar e encontraria seu território definitivo: as Minas Gerais.
A cachaça chegou às Minas com os tropeiros e bandeirantes, através do Caminho Velho, que já existia no fi m do século XVII e ligava Paraty a Guaratinguetá e, daí, à região aurífera da Vila Rica. Também subiu o rio São Francisco, com os baianos que se internaram no sertão rosiano. Em 1715, o governador da província, Brás Baltazar da Silveira, já dá início à perseguição ao líquido brasileiro, proibindo a construção de novos alambiques, sob a alegação de que a bebida “inquieta os negros” e causa “dano irreparável ao Real Ser-viço e à Fazenda” – pura reserva de mercado para os vinhos e bagaceiras do Reino. A lei é tão inócua quanto as anteriores e outras que se sucederão ao longo do século para deter o avanço dos alambiques, que vão se tornando parte do equipamento básico das fazendas mineiras.
Enquanto as minas escasseavam em fins do século XVIII, os alambiques se multiplicavam para desgosto da Coroa. Durante a Inconfidência, ela será usada para brindes, por exemplo, no banquete oferecido pelo Padre Toledo em outubro de 1788 após o batizado dos filhos de Alvarenga Peixoto e Bárbara Helio-dora – considerada a primeira reunião inconfidente na Comarca do Rio das Mortes, hoje Tiradentes.
A própria família de Tiradentes produzia – e produz – cachaça, no engenho Boa Vista, na atual cidade de Xavier Chaves. O padre Domingos da Silva Xavier, irmão do alferes, cuidava do alambique. Já no território da lenda, o último pedido do futuro mártir da nacionalidade basileira teria sido: “Molhem minha goela com cachaça da terra”.
A ligação lendária entre o alferes e a bebida faz todo o sentido dentro da construção dos símbolos da nacionalidade brasileira do século XIX, a reboque da Independência. Nesse período, a cachaça atinge seu ponto mais elevado como parte da vida nacional. Em 1863, são 150 os alambiques em funcionamento apenas em Paraty, fornecendo, inclusive, para o Palácio Imperial, onde a preferência do conde d’Eu – que se casaria com a princesa Isabel no ano seguinte – seria glosada, mais tarde, por Oswald de Andrade: “No baile da Corte/ Foi o Conde d’Eu quem disse/ Pra Dona Benvinda/ Que farinha de Surui, Pinga de Paraty e fumo de Baependi/ É comê, bebê, pitá e caí.”
Recebida em palácio e cantada pelos nobres, tal era o prestígio da cachaça naquele século que foi admitida até nas cerimônias religiosas, como atesta o Baile da Aguardente, recolhido por Melo Morais Filho e mencionado por Câmara Cascudo no seu Prelúdio da cachaça. Segundo o folclorista, a penetração na religiosidade – a mais profunda das representações de um povo – comprova o elevado status que a cachaça atingiu naquele momento.
Mas a segunda metade daquele século testemunharia a ascensão da burguesia e, com ela, aquilo que Nelson Werneck Sodré denominou a “ideologia do colonialismo” – a afinidade entre a burguesia nascente brasileira e a europeia, com a subordinação material e cultural da primeira pela segunda. O mais divulgado dos “preconceitos justificatórios” difundidos por essa ideologia, vulgarizado no período, é o da superioridade racial das raças europeias, particularmente nórdicas, sobre os de outras raças, especialmente negros e indígenas.
A prosódia brasileira é rejeitada – nos teatros, adota-se o modo de falar lisboeta –, e os burgueses brasileiros são os mais numerosos assinantes da Revue des Deux Mondes fora da França. E ganha espaço a ideia de um Brasil “civilizado” (o litorâneo, de pretensões cosmopolitas) em oposição ao atrasado – o interiorano, território do índio, do cabra e da cachaça.
Estreitamente ligada à história da escravidão, a cachaça é rejeitada como bebida de negro, de caboclo (os índios desgarrados que iam para a cidade em condição de miséria), de cabra (o trabalhador do canavial nordestino). Mas, como diz Câmara Cascudo, ela asseguraria sua sobrevivência, “ficando com o povo”.
E é nessa condição que ela aparece em mais um episódio da história brasileira. Numa noite de novembro de 1910, o marinheiro Marcelino Rodrigues tenta embarcar no navio Minas Gerais com duas garrafas da branquinha. Um ato de indisciplina, por certo, repreendido por um cabo enérgico, que apreende as garrafas. Marcelino reage a navalha, mas é preso e recebe, como punição, 250 chibatadas – dez vezes mais do que era o disposto pelo regulamento.
O episódio precipitou a longamente planejada Revolta da Chibata, imortalizada na canção de João Bosco e Aldir Blanc Mestre-sala dos mares. A letra genial de Aldir homenageia o líder do movimento que pretendia acabar com os castigos físicos na Marinha brasileira: João Cândido. Filho de escravos, o marujo comandou os quatro encouraçados que ameaçaram bombardear a capital da recém-instituída República caso suas reivindicações não fossem aceitas. Seis anos antes, o “almirante negro” tinha recebido também uma punição por levar cachaça a bordo: suspensão do soldo.
A cachaça era o consolo para a vida dura daqueles homens para quem a abolição, a República e a cidadania não haviam chegado de todo. E, assim ela atravessou o século XX: como a amiga do povo, cantada pelos poetas populares e rejeitada por aqueles que viam no que era mais profundamente brasileiro o sinal do atraso.
Mas mesmo esses setores acabam, no fi m do século, por se sentirem ultrapassados diante da vitória retumbante da cachaça, sobrevivente às perseguições seculares e entronizada como símbolo nacional. A bebida se valoriza, ganha qualidade, aprimora suas técnicas de envelhecimento, e seu consumo começa a não ser visto mais como coisa da “ralé”.
No século XXI, o Brasil e o que seja brasileiro entram na moda e a cachaça vai junto, ocupando cada vez mais espaços. Agora, testemunha-se a chegada dos grandes grupos multinacionais (a Diageo, com a compra da Ypióca, e a Campari, com a aquisição da Sagatiba) que almejam, junto com empresários nacionais e o governo brasileiro, agora de todo convencidos dos valores da bebida, levá-la a outro patamar, abrindo um novo capítulo nessa história que se confunde com a da superação e resistência do povo brasileiro: a de potência mundial.
Fonte: História Viva
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