sábado, 26 de março de 2016

É HORA DE IR EMBORA


A maculada presidente deveria renunciar agora

As dificuldades de Dilma Rousseff tem se aprofundado por meses. Os grandes escândalos envolvendo a Petrobras, a gigante estatal petrolífera da qual ela foi presidente, tem envolvido algumas das pessoas mais próximas à ela. Ela preside sobre uma economia sofrendo sua pior recessão desde 1930, principalmente por erros que ela cometeu durante seu primeiro mandato. Sua fraqueza política tem deixado seu governo quase impotente frente ao crescimento do desemprego e na queda do padrão de vida. Suas taxas de aprovação mal alcançam dois dígitos e milhões de brasileiros saíram às ruas para gritar “Fora Dilma”.


E ainda, até agora, a presidente brasileira poderia com justiça reivindicar que a legitimidade conferida pela sua reeleição de 2014 estava intacta e que nenhuma das acusações feitas contra ela justificariam seu impeachment. Como os juízes e a polícia que está investigando algumas das mais importantes figuras do Partido dos Trabalhadores (PT), ela poderia dizer de cara limpa do seu desejo de ver a justiça feita.




Agora ela afundou essas vestes de credibilidade. No dia 16 de março, Dilma fez uma decisão extraordinária de nomear seu antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva, para ser o chefe de seu gabinete. Ela retratou isso como um lance perspicaz. Lula, como ele é conhecido, é um operador político sagaz: ele poderia ajudar a presidente a sobreviver à tentativa do Congresso de impeacha-la, e talvez estabilizar a economia. Mas dias antes, Lula tinha sido rapidamente detido para interrogatório por ordem de Sérgio Moro, o juiz federal responsável pelas investigações da Petrobras (chamada de Lava-Jato), em que há a suspeita que o ex-presidente lucrou com o esquema de propinas. Promotores do Estado de São Paulo acusaram Lula de esconder sua propriedade de um condomínio de fente ao mar. Ele nega essas acusações. Ao adquirir o posto de ministro, Lula teria imunidade parcial. Somente a Suprema Corte poderia julga-lo. Eventualmente, um juiz do STF suspendeu sua nomeação.


Esse jornal tem longamente argumentado que o sistema jurídico ou os eleitores - não políticos interesseiros tentando impeacha-la - deveriam decidir o destino da presidente. Mas a nomeação de Lula por Dilma parece uma tentativa grosseira de impedir o curso da Justiça. Mesmo que não fosse a intenção dela, esse seria o efeito. Foi o momento quando a presidente escolheu os estreitos interesses do seu grupo político sobre o império da lei. Ela assim se tornou inapropriada para permanecer presidente.


Três formas de deixar o Planalto


Como ela sairá do Planalto tem grande importância. Nós continuamos a acreditar que , na falta de provas de crimes, o impeachment de Dilma é injustificável. O procedimento contra ela no Congresso é baseado em alegações sem provas que ela maquiou as contas públicas para esconder o verdadeiro tamanho do deficit orçamentário de 2015. Isso parece um pretexto para tirar uma presidente impopular. A ideia, apresentada pelo líder do comitê do impeachment, que os congressistas  que irão deliberar o destino de Dilma ouvirão “a voz das ruas” apontaria para um preocupante precedente. Democracias representativas não deveriam ser governadas por protestos e pesquisas de opinião.
Há três formas de retirar Dilma que repousam em fundamentações mais legítimas. A primeira seria mostrar que ela obstruiu as investigações sobre a Petrobras. Alegações de um senador do PT (Delcídio do Amaral) que ela fez isso talvez forme agora a base para um segundo pedido de impeachment, mas até agora não há provas e ela nega ter feito isso; Dilma ter tentado proteger Lula de uma ação penal talvez forneça mais fundamentos. Uma segunda opção seria uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de convocar novas eleições. Talvez façam isso se descobrirem que a campanha de reeleição de 2014 foi financiada com propinas fornecidas através de executivos da Petrobras. Mas essa investigação será demorada. A melhor e mais rápida maneira de Dilma deixar o Planalto seria ela renunciar antes de ser mandada embora.

O vice-presidente Michel Temer



A sua partida ofereceria ao Brasil a chance de um novo começo. Mas a renúncia da presidente não iria, por si mesma, resolver os muitos problemas fundamentais do Brasil. Seu lugar seria inicialmente tomado pelo vice-presidente Michel Temer, líder do PMDB. Temer poderia liderar um governo de união nacional, incluindo os partidos de oposição, quais, em teoria, deveriam ser capazes de embarcar nas reformas fiscais, necessárias para estabilizar a economia e acabar com um deficit orçamentário que está perto de 11% do PIB.


Infelizmente, o partido de Temer está tão profundamente envolvido no escândalo da Petrobras quanto o PT. Muitos políticos que se apoiariam um governo de união, incluindo alguns da oposição, são popularmente vistos como representantes de uma desacreditada classe dirigente. Em um congresso de 594 membros, 352 enfrentam acusações de malfeitos criminais. Uma nova eleição presidencial iria dar aos eleitores uma oportunidade de confiar as reformas à um novo lider. Mas mesmo isso seria deixar a legislatura podre até 2019.


O judiciário, também, tem questões a responder. Juízes merecem grandes créditos por chamar à responsabilidade os maiores empresários e políticos, mas eles tem minado a sua causa por desprezarem as normas legais. O último exemplo é a decisão de Sergio Moro de liberar gravações telefônicas de conversas entre Lula e seus aliados, incluindo Dilma. Muitos juristas acreditam que somente o STF poderia divulgar conversas em que uma das partes tem imunidade legal, como a presidente possui. Isso não justifica a alegação dos defensores do governo que os juízes estão armando um “golpe”. Mas torna fácil para os investigados na Lava-Jato desviar a atenção de seus próprios erros para os equívocos de seus investigadores.

Juiz Sérgio Moro


A guerra de partidos e personalidades no Brasil obscurece algumas das mais importantes lições da crise. Tanto o escândalo da Petrobras e a crise econômica tem suas origens nas leis e práticas equivocadas que são muito antigas. Retirar o Brasil dessa bagunça requer mudança por atacado: controlar os gastos públicos, incluindo as pensões. Revisão geral das esmagadoras altas de impostos e leis trabalhistas. E reformar um sistema político que encoraja a corrupção e enfraquece os partidos políticos.

Essas reformas não podem mais ser adiadas. Aqueles que gritam “Fora Dilma” nas ruas deveriam reivindicar vitória se ela estiver deposta. Mas para o Brasil realmente ganhar seria somente o primeiro passo.

Fonte: The Economist

quinta-feira, 10 de março de 2016

O QUE É NECROFILIA IDEOLÓGICA?



De Mao à Trump, alguns líderes são cegamente fixados em más ideias


Todos nós conhecemos alguém assim: um amigo que sempre se apaixona pelo homem errado, ou um colega talentoso que pula de trabalho em trabalho porque ele aparentemente não pode tolerar nenhum tipo de autoridade. Sigmund Freud chamava isso de “a compulsão da repetição” - um padrão psicológico onde pessoas repetem os mesmos maus comportamentos apesar de estarem cientes dos seus resultados negativos.


Mas esse fenômeno não afeta somente indivíduos. Ele também afeta grupos políticos e mesmo nações inteiras que ficam encantadas por líderes cujas idéias já foram experimentadas e demonstradas como fracassadas. Essas más idéias, que deveriam estar mortas e enterradas, dão um jeito de periodicamente reaparecer e ganhar popularidade.


Muitos anos atrás, eu chamei essa condição de “necrofilia ideológica”: necrofilia é uma atração sexual por cadáveres. Necrofilia ideológica é uma fixação cega por más idéias. Acontece que essa patologia é mais comum na sua forma política do que na sexual. Ligue sua TV hoje à noite e eu aposto que você verá alguns políticos passionalmente apaixonados por uma idéia que já foi testada e fracassou, ou defendendo crenças que tem se provado falsas pela incontestável evidência.


Maoismo é um bom exemplo. A doutrina enfatizava a necessidade de uma “revolução permanente”, insistia que os camponeses deveriam ser os protagonistas da vida política e econômica, fazer da coletivização agrícola a norma e privilegiar pequenas indústrias em vez das unidades econômicas de larga escala. A Revolução Cultural de Mao Tsé Tung, O Grande Salto Para Frente e outras políticas causou estragos à nação, produzindo fome em massa e no fim deixando mais de 40 milhões de chineses mortos. Nos anos 1980, uma avaliação do legado de Mao por um jornal oficial chinês concluía: “nos seus últimos anos ele cometeu grandes erros por um longo período, e o resultado foi um grande desastre para o povo e seu país. Ele criou uma tragédia histórica”. Essa dura conclusão deveria ter arruinado as idéias de Mao, mas ainda os auto-proclamados rebeldes e partidos políticos maoístas permanecem em um surpreendente número de países.

Bernie Sanders e Donald Trump

Peronismo é outro exemplo. Argentina tem uma dúbia distinção de ser o único país que foi capaz de “desdesenvolver” a si mesmo depois de alcançar padrões de vida equivalentes à aqueles dos países desenvolvidos. O prolongado entusiasmo nacional pelo Peronismo em suas diversas formas é em grande parte a culpada por isso. O presidente Juan Domingo Perón, que liderou o país nos anos 1940 e 1950 e novamente nos anos 1970, foi um prodígio do populismo que se tornou tão proeminente na América Latina e em outros lugares. Ele e seus imitadores incentivaram o nacionalismo, fizeram promessas que eram impossíveis de serem cumpridas, exploraram questões de cunho racial, étnico ou religiosas e distribuíram recursos em nome dos pobres de maneiras que à longo prazo tornou a todos mais pobres.


É claro que políticos em todo o lugar dizem o que as pessoas querem escutar. Mas populistas vão muito mais além. Considere, por exemplo, a Venezuela de Hugo Chavez, um grande expoente do extremo populismo do século XXI. Antes da sua morte em 2013, ele obstinadamente perseguiu políticas conhecidas por terem falhado na Venezuela e em outros lugares: congelando preços de bens e serviços a níveis abaixo do seu custo de produção; tirar empresas privadas de seus donos e dá-las agentes nomeados politicamente;, permitir o governo gastar e disparar o endividamento, promover gasto dos consumidores através de insustentáveis doações, subsídios e créditos; desencorajando investimentos; estimulando importações em vez de exportações; e impondo um controle rígido do comércio com o exterior.


O resultado: o país com as maiores reservas de petróleo do planeta está agora importando gasolina. Sofre com os maiores índices de inflação e crítica escassez de comida, remédios, peças de reposição e muito mais. Uma nação que costumava ter a maior renda per capta na América Latina agora está em meio a uma crise humanitária. O que costumava a ser uma das mais longevas democracias da região é agora um Estado falido dirigido por um governante que se apóia nos militares para realizar todos os tipos de abusos autoritários. E ainda, as idéias e políticas de Chavez continuam a atrair admiradores na Venezuela e fora dela.


Necrofilia ideológica pode ser encontrada em todas as escolas de pensamento. Na direita e na esquerda, entre ambientalistas, separatistas, e nacionalistas, políticos religiosos e ateístas, defensores do livre mercado, campeões do governo grande ou apoiadores da austeridade econômica.


Nos EUA, Donald Trump tem proposto deportar em massa 11 milhões de imigrantes ilegais, construir um muro na fronteira dos EUA com o México e decretar uma proibição de qualquer muçulmano que deseje visitar ou imigrar para os EUA. Seus planos ecoam a trágica história da Europa de segregar grupos sociais “perigosos” pela discriminação e expulsão de suas casas. Por anos, os EUA tem construído muros e cercas para impedir imigrantes de cruzar a fronteira, sem resolver o problema da imigração ilegal. A pretensão de que na era da globalização, um grande, amplo e largo muro irá deter migrantes é profundamente falha também. Não somente seriam essas ideias falhas em trazer os seus prometidos resultados, mas elas são também próximas do impossível de serem implementadas. Ainda é agora claro que isso é irrelevante. De fato, essas más ideias são precisamente a razão dos seguidores de Trump estarem atraídos por ele.


Ted Cruz, candidato presidencial Republicano companheiro de Trump, tem argumentado que “bombardear completamente” o território do ISIS na Siria e no Iraque é a melhor forma de combater o grupo. Ele convenientemente desconsidera o fato de que a doutrina do Estado Islâmico está ganhando adeptos na Europa, EUA e Ásia e ISIS hoje é mais uma fonte amorfa de inspiração do que uma organização com endereço fixo. E como se os EUA não tivessem experiência com campanhas de bombardeios em massa em países distantes que resultaram exatamente no oposto do que os estrategistas de Washington pretendiam. Escrevendo no The Atlantic muitos anos atrás, Henry Grabar descreveu vividamente como os EUA nos anos 1960 e 1970 jogou mais bombas no Camboja do que os Aliados usaram em toda a 2ª Guerra Mundial, matando um incalculável número de pessoas, centenas de milhares de aldeões foram forçadas a fugir para a capital, causando superpopulação e escassez de comida; os cambojanos do campo que eram anteriormente neutros se radicalizaram. Essas condições talvez tenham contribuído para o surgimento do Khmer Vermelho no país.


Os candidatos Republicanos dificilmente possuem exclusividade na necrofilia ideológica. A atração de Bernie Sanders por grandes programas governamentais centralizados o coloca inequivocadamente entre os populistas que repudiam a ideia de manter equilíbrios fiscais e resultam em  insustentáveis deficits orçamentários governamentais. Os planos de seu site de campanha equivaleria de 18 a 30 bilhões de dólares em novos gastos nos próximos 10 anos. Empenhado em uma variante do socialismo europeu para a multidão de adoráveis jovens, ele ele não menciona que se eles fossem europeus, muitos deles estariam desempregados e sem perspectivas de acharem um trabalho com boa remuneração. O mais importante: muitas de suas políticas já foram testadas e muitas não funcionaram muito bem.

Em um mundo em qual umas poucas digitadas no teclado de um computador pode mostrar uma riqueza de informação sobre o histórico de uma proposta econômica ou política em particular, é surpreendente que a necrofilia ideológica seja ainda tão comum. Há muitas razões porque as más ideias perduram, mas talvez a mais importante seja a necessidade das pessoas acreditarem em um líder quando estão diante de graves ansiedades ou incertezas associadas à rápidas mudanças - e a inclinação demagoga nesses momentos frágeis de prometer qualquer coisa, mesmo as ideias já descartadas dos demagogos do passado, afim de obter e manter o poder.


Artigo traduzido da revista The Atlantic

terça-feira, 3 de março de 2015

Processo de Isabela ou a Vitória do Senso Comum do Politicamente Correto



Uma moça chamada Isabela Cardoso, que vivia na cidade de Gramado, no Rio Grande do Sul, acompanhou o seu esposo para a cidade de Imperatriz no Maranhão. Ao retornar para a sua cidade, depois de 1 ano e 8 meses morando em terras maranhenses, ela escreve a sua impressão do local no Facebook:

"Finalmente em casa, depois de 1 ano e 7 meses na SUSANO de Imperatriz eu e meu esposo retornamos a nossa cidade. Estado pobre kkkkkkkkk. A cultura maranhense é horrível, o carnaval é um lixo 'Tal de bomba meu boi (sic), tambor de crioula'. A maioria das mulheres são piriguetes e os Homens malandros. Mais da metade das pessoas são semi-analfabetos (sic) #AmoMinhaCidade #Gramado RS"

Por expor a sua opinião sobre o local, ela será processada por “crime de ódio” contra o Maranhão e seu povo. Seu marido foi mandado embora da empresa que trabalhava, a Suzano Papel, e sua vida foi exposta ao ponto de estar sendo perseguida nas redes sociais.

O que está em jogo nessa questão da Isabela dizer o que pensa sobre o Maranhão não é a enunciação de um comentário supostamente preconceituoso, mas sim a criminalização da opinião, da qual posamos concordar ou discordar. O mecanismo dessa criminalização segue a lógica da “luta de classes”, onde o mais pobre é invariavelmente explorado pelo mais rico. A moça por ser da região sul, a mais rica do país, não tem o direito de ter uma opinião adversa em relação ao norte ou nordeste, principalmente do Maranhão, o Estado mais pobre da Federação, pois se trata de preconceito contra os mais pobres. Se não gostar nem do carnaval e da cultura local, ou mesmo não sentir simpatia pelo povo, se trata de uma “alienada” e “elitista” que deve ser publicamente punida.

                                                   Tambor de Crioula, tradição maranhense

Tal mentalidade tem se tornado um senso comum, incentivado pela academia onde o “estudo dos oprimidos” tem sido dominante nas humanidades. Tais estudos são de suma importância para o entendimento mais amplo das sociedades diversas no decorrer do tempo histórico, porém, a sua vulgarização, feita principalmente por professores de História e Geografia nas escolas de ensino básico (que no geral mal leem livros além das xerox que tiveram que ler para as matérias de seus cursos e do material didático para poder ministrar suas aulas) por motivos ideológicos tem trazido efeitos colaterais nocivos. Sem muita reflexão e estudo, graças à essas ferramentas trazidas por esses professores, qualquer aluno relapso de Ensino Fundamental consegue se achar as raízes dos males do mundo. Em um binarismo desconcertante e tosco, divide-se o mundo entre os opressores e oprimidos, sendo que esses últimos são eternamente inocentes e possuem a verdade libertadora do mundo. Nessa visão esquemática de mundo, consegue-se pensar ser intelectual sem muito esforço ou analisar as relações complexas que existem dentro de um sistema de poder e dominação (nem todo sistema de poder corresponde à dominação, como querem crer os esquerdistas).

Agora, a condenação de opiniões negativas referente à regiões do país não são igualitárias. Falar mal de São Paulo e de seus habitantes não costuma causar comoção. Pois como é o Estado mais rico da Federação, com certeza são os “opressores” e merecem toda a condenação possível. O tumblr “Esses Paulistas...” reúnem algumas referências nada lisonjeiras que fizeram à São Paulo, como desejando que os paulistas morram de sede, acusando-os de serem “escória” e lhes desejando a morte. Tais comentários dirigidos aos paulistas, muito mais fortes e graves do que os feitos por Isabela sobre os maranhenses, de acordo com a ótica dos nossos campeões humanistas, não merecem repulsa alguma, pois São Paulo, somente pelo fato de ser rico, é naturalmente opressor, portanto, se trata de “justiça social”. O processo contra Isabela marca a vitória da criminalização da opinião não por uma ditadura, mas por uma censura tácita do “politicamente correto”, que por trás do seu discurso de defesa da pluralidade, quer impor uma opinião, mentalidade e discurso único, e o que foge disso, deve ser punido com exclusão social. Nada mais autoritários do que aqueles que pregam a imposição do discurso da diversidade. Que a democracia seja salva dessa praga que a arruína e a carcome sem ao menos percebermos.


Luís XIV e Kangxi: Os Déspotas Esclarecidos

                                                   Luis XIV e Kangxi



Isabelle e Jean-Louis Vissère 

Luís XIV e toda a elite francesa eram fascinados pela China, esse país longínquo cheio de lendas propagadas por antigos viajantes, como Marco Polo. Um interesse reavivado, em sua época, pelos testemunhos de missionários como o padre Ricci, que, tendo chegado a Pequim no início do século XVII, soube ganhar a confiança do imperador. Já os progressos da navegação e do comércio permitem doravante a uma clientela abastada adquirir tecidos, laca, pinturas em papel e porcelanas do Oriente – em outras palavras, ver e tocar a realidade dessa terra fabulosa. A moda “à chinesa” invade tudo. O rei não resiste: manda construir o efêmero Trianon de porcelana para sua favorita Madame de Montespan e coleciona centenas de peças do mesmo material. Para além das fantasias, o rei conduz, desde o início de seu reinado, uma política de abertura, voluntarista e apaixonada, em direção à China e a seu imperador, Kangxi.




Nos anos 1684-1685, sucedem-se acontecimentos inesperados que o jovem monarca vai muito habilmente explorar, seguindo os conselhos de seu entourage. Colbert, poderoso secretário de Estado da Marinha, queria desenvolver o intercâmbio comercial. Seu sucessor, o marquês de Seignelay, precisa melhorar as cartas náuticas e definir a marcação de pontos de referência longínquos. O padre de La Chaise, confessor do rei, quer implantar missões jesuítas no Oriente. Uma política de implicações diplomáticas, comerciais e religiosas consideráveis: a supremacia dos mares (disputada por portugueses, holandeses e ingleses) e a extensão do cristianismo na metade oriental do globo. E o foco era essa China longínqua, rica de tantas possibilidades para um rei ávido por conquistas e glória.



                                                 Jean-Baptiste Colbert, ministro de Luis XIV

Em 15 de setembro de 1684, Luís XIV recebe em Versalhes um missionário jesuíta flamengo, o padre Couplet, que passou anos na corte de Pequim. O religioso deseja reforçar as missões na China, mas também levar ao país conhecimentos científicos do Ocidente. Kangxi precisa de um douto emérito para presidir o bureau imperial de astronomia.



Ora, Luís XIV criou em 1666 a Academia das Ciências, que reagrupa a elite do reino, e, no ano seguinte, o Observatório de Paris, dirigido por Cassini. Isso ilustra bem as preocupações comuns dos dois soberanos. Já dizia o padre Verbiest, em carta de 1681, “sob o manto estrelado da astronomia, nossa santa religião se introduz facilmente na China”.


COISAS RARAS E CURIOSAS”

Diplomata, Couplet se apresenta acompanhado de um jovem chinês convertido ao cristianismo, Michel Sin. Os cortesãos admiram seus trajes suntuosos, sua habilidade em comer com pauzinhos e, sobretudo, sua pia declamação em chinês de um pai-nosso e de uma ave-maria. Alimenta a curiosidade e a esperança de uma conversão massiva da China.



Em 27 de novembro do mesmo ano, chega uma embaixada de Sião (a atual Tailândia) a Brest; recepção solene em Versalhes, sem o fausto, todavia, que acompanhará a segunda embaixada, recebida com grande pompa em 1686. Voltaire, em O século de Luís XIV, sugerirá maliciosamente: “O extremo gosto que Luís XIV tinha pelas coisas que brilham foi ainda mais explorado pela embaixada que recebeu de Sião, país onde se havia ignorado até então que a França existisse”.



O rei de Sião necessita de cooperação técnica e científica e aceita receber missionários cristãos. A escolha de Sião pode parecer inesperada, mas já existem relações com esse país. Além disso, para contornar o fechamento da China aos estrangeiros, os navios vindos da Europa são obrigados a atracar primeiro onde se quer recebê-los (Macau, Sião, Cochinchina etc.), antes que seus passageiros cheguem a Pequim por meios próprios.




UMA PREPARAÇÃO RÁPIDA E DISCRETA

Assim, os embaixadores siameses oferecem à França a oportunidade esperada há tempos: enviar para a China missionários jesuítas. Luís XIV hesita, mas se deixa convencer por seus conselheiros (religiosos e eruditos) e acaba se envolvendo pessoalmente na aventura.



A expedição é preparada no maior segredo e com toda urgência, entre dezembro de 1684 e março de 1685. O monarca a financia com recursos pessoais. São armados dois navios, L’Oiseau La Maligne. A bordo, seis jesuítas matemáticos e, em seus porões, instrumentos de medição. Os doutos embarcados, escolhidos a dedo, são todos membros da Academia das Ciências. No comando, o padre de Fontaney, que ensinou matemática por um longo tempo no colégio Louis-le-Grand.



Os doutos chegam a Pequim em fevereiro de 1688: a viagem marítima correu bem, mas a passagem de Sião para a China foi repleta de dificuldades. O imperador os recebeu bem e, em 1693, pôs à sua disposição um terreno próximo a seu palácio para ali construírem uma casa, uma igreja e um observatório.



Esse grupo constitui o núcleo fundador da missão jesuíta na China. O mais insólito é ver esses estrangeiros instalados em Pequim, bem no coração da Cidade Proibida. Situação única que os jesuítas, como bons cortesãos, vão atribuir à política dos dois soberanos.



                                 Desembarque da marinha francesa em Sião



Os jesuítas são os primeiros a fazer conhecer a China, contribuindo para uma aproximação ao menos virtual não apenas dos dois povos, como também, mais estranhamente, dos dois monarcas. Muito rapidamente é estabelecido, tanto nos textos como nas representações artísticas (estampas ou tapeçarias), um paralelo entre os dois soberanos. À exceção do paganismo de Kangxi, tudo parece aproximar os dois homens. Seus reinos são estritamente contemporâneos; sua história, idêntica: eles são sagrados muito jovens, após uma regência difícil. Seu amor pelas artes e pela ciência, como também sua sabedoria política, faz deles o que se chamará em breve de “déspotas esclarecidos”.



A título de exemplo, eis a dedicatória que o padre Bouvet redige para apresentar a Luís XIV seu Retrato histórico do imperador da China (1697): “Os jesuítas que Vossa Majestade enviou, há alguns anos, ficaram surpresos em encontrar, no extremo da terra, o que nunca se tinha visto fora da França: um príncipe que, como Vós, Senhor, junta a um gênio tão sublime quanto sólido um coração ainda mais digno do Império, que é mestre de si mesmo como de seus súditos, igualmente adorado por seu povo e respeitado por seus vizinhos, um príncipe, em uma palavra, que, reunindo em sua pessoa a maioria das grandes qualidades que formam o herói, seria o mais realizado monarca que já reinou sobre a terra se seu reinado não concorresse com o de Vossa Majestade”. A lisonja é hábil, mas as qualidades podem ser consideradas fatos históricos.



Trocando retratos, como hoje se trocam fotos, os dois monarcas se encontram frente a frente, igualmente fascinados. O paralelo entre eles se desenvolve muito rapidamente. Kangxi chega a querer acentuar a semelhança, mandando fazer seu retrato à moda europeia por Gherardini, um pintor jesuíta dessa nova missão. As consequências dessa política mostram-se paradoxais e imprevisíveis. Se os jesuítas não conseguiram converter os imperadores e se suas descrições suavizam um tanto a realidade, contribuíram largamente para fazer conhecer por meio de seus escritos um país misterioso, no qual os filósofos, hostis ao absolutismo, encontrarão um modelo político: tolerância religiosa, despotismo esclarecido, respeito à agricultura, seleção das elites por concurso... Seria até mesmo possível afi rmar que, ao se apaixonar pela China, Luís XIV – involuntariamente – abalou o Antigo Regime.


sábado, 20 de setembro de 2014

A Real Questão Por Trás do Referendo Escocês




Essa semana, o fato político mais relevante a nível mundial foi o referendo que ocorreu na Escócia, onde o povo iria decidir se permanecia parte do Reino Unido ou se tornariam independentes. A eleição foi especificamente bastante angustiante para todos os lados porque de acordo com as pesquisas, não se sabia quem poderia vencer nessa disputa, se era o sim (a favor da independência) ou o não, já que ambas as posições estavam bastante parelhas nas opiniões dos escoceses.

Muito se discutia a viabilidade ou não de uma Escócia independente. Questões práticas sobre a governação cotidiana e da geopolítica internacional foram levantadas: será que a União Europeia aceitaria o país rapidamente, dando exemplo indesejado a regiões separatistas na Europa, como Catalunha, Veneza e Valônia? Usariam a libra esterlina como moeda, o euro ou alguma moeda própria? E a segurança, ficaria o país vulnerável a um ataque terrorista?

Com o resultado sendo o “não”, o Reino Unido – ao menos por ora – permanece unido e a monarquia britânica com as suas possessões intactas. Mas o que realmente estava em jogo no referendo escocês era além dos prejuízos ou vantagens econômicas e políticas de uma possível independência escocesa, mas sim mostra um momento em que o conceito de Estado-Nação está sendo questionado.

Criado em fins de século XVIII com o advento da Revolução Francesa, o conceito de um Estado que está acima das juridições locais das comunidades, substituindo-as por normas dadas por um Estado centralizador. Bastante diferente do que ocorreu durante a Idade Moderna (séculos XV-XVIII), onde o modelo principal de governação era o das monarquias compósitas, onde os reis não tinham o poder centralizado em suas mãos, mas tinham que respeitar os poderes e instituições locais das comunidades que estavam sob a coroa. 

A função do rei era principalmente fazer com que a lei e a justiça local, muitas vezes vindas de tradições seculares das comunidades, fossem respeitadas, e essa era a condição para que fosse admitido que o monarca reinasse. Ou seja, nas monarquias da Idade Moderna, havia dentro de um reino uma pluralidade de jurisdições, leis e ordenações, muitas vezes contraditória entre si, que o monarca tinha que manter caso quisesse se manter no poder sem revoltas instigadas pela nobreza e o povo, que viam na violação dessas leis uma ameaça às suas liberdades (no sentido que a palavra tinha na Idade Moderna, que não era a liberdade individual, mas sim da comunidade) e privilégios.
Catalães apoiando independência escocesa

Com a criação do Estado-Nação, todo esse corpo de jurisdições locais será suprimido pela afirmação cada vez mais evidente do poder central, que agora não tem mais o papel de manter e legitimar as leis e hierarquias locais, mas sim legislar e administrar o país acima dos particularismos. Com a destruição lenta, e não sem grandes conflitos, das leis particulares de cada localidade, os novos Estados-Nações puderam criar a Constituição, que torna as leis válidas para todas as partes do território.

Esse processo coincidiu com a ascensão do liberalismo como ideologia política e uma variante do capitalismo, o que foi fundamental no avanço desse processo na medida em que para o liberal, a liberdade individual está acima da comunidade, dessa forma, os homens devem se fazer representar como indivíduos, não como coletividade. 

Dessa forma, o novo Estado-Nação, ancorado no tripé do liberalismo político e econômico, além do individualismo (embora durante o século XIX e XX tal modelo será sempre contestado e esse Estado conhecerá outras variantes ), vai se consolidar como um Estado defensor da liberdade individual e da política como reflexo das escolhas dos governados através da representantes eleitos. Liberdade individual, centralização e representação são as palavras chave para entender o Estado-Nação moderno.

No século XX, o Estado-Nação liberal foi contestado por movimentos anarquistas, comunistas e fascistas, porém, nos dois últimos, a idéia de centralização do Estado foi canalizado para uma ideia antiliberal, ou seja, contra as liberdades individuais e econômicas em prol do totalitarismo, porém, tais modelos foram derrotados e entramos no século XXI com um predomínio quase que absoluto do Estado-Nação nos moldes liberais.

Os movimentos separatistas, sempre ativos durante o século XIX e XX, ganharam mais força no século XXI com a crise econômica de 2008, o que fez diversos países europeus a questionar o modelo político sobre qual estavam assentados, e também o seu modelo econômico. Com isso, o apelo das comunidades locais voltou a ser bastante forte por toda a Europa. Na Bélgica, Flamengos e Valões não chegam a um acordo para a organização do seu país, sendo a unidade mantida apenas pela pessoa do rei. Na Espanha, a Catalunha, após ser esmagada a sua tentativa de saída da coroa espanhola no século XVII, em 1640, em 1715 e nos anos 1930 por Franco, agora tem um movimento mais consistente do que nunca pela independência. O país Basco idem, além de Veneza, na Itália, onde em um plebiscito informal, a população em sua maioria aprovou a secessão.



O que está em jogo por toda a Europa agora é a preservação do conceito de Estado-Nação e além disso, o modelo econômico globalizado vigente. Com uma política e economia cada vez mais mundializadas e geopolicamente integradas, o apelo de retorno ao conceito de nação original, ou seja, o conjunto da comunidade local, nunca pareceu tão forte nesses últimos dois séculos, e o plebiscito escocês não encerrou essa página, apenas abriu as possibilidades de diversas regiões da Europa, e mesmo do mundo (Kosovo, Curdos, Chechênia, Tibet, entre outras) pedirem secessão de seus países sem haver conflitos pelas armas, mas sim através da vontade popular. Isso que estamos vendo é um processo de, além de mudanças políticas, transformações econômicas, pois o capitalismo como conhecemos hoje está também em mutação, além de seus fluxos de circulação econômica, modificações que essas secessões territoriais podem vir a acelerar 

Isso tem um potencial de em pouco tempo redefinir as fronteiras do mundo. Será interessante acompanhar no que essa abertura de uma caixa de Pandora aberta pelos escoceses, que os governos do mundo gostariam de manter fechada, irá resultar.

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Cachaça: uma dose de história

Ficheiro:Jose malhoa bebados.jpg
Os Bêbados, de José Malhoa (1907)

Bebida acompanhou a formação da nossa nacionalidade, cumprindo importante papel na economia colonial e provocando a primeira revolta no Brasil contra o domínio português. Mais tarde, se tornaria símbolo da pátria independente antes de ser vilipendiada e superar a rejeição dos que veem o que é brasileiro como sinônimo de atraso

Dirley Fernandes

Presente nos mapas dos navegantes europeus desde fins do século XV, o Brasil foi quase esquecido nas primeiras décadas do século XVI pela Coroa portuguesa, que não dispunha nem de gente suficiente no Reino para uma obra de colonização no vasto território d’além-mar. Com isso, a costa brasileira era visitada indistintamente por aventureiros – italianos, holandeses, franceses, espanhóis... – que se dedicavam à coleta de pau-brasil, sempre negociando com os índios. A partir da terceira década do século, no entanto, uma circunstância especial ajudaria a definir o futuro lusitano das terras do Brasil: a necessidade de produzir mais açúcar, que alcançava naquele momento o status de “ouro branco”.

O uso do açúcar, até fins do século XV restrito à nobreza, tinha se disseminado por toda a Europa e atingido novas classes a partir do sucesso de sua cultura na ilha da Madeira, iniciada na primeira metade do Quatrocentos. Mas Funchal, capital da ilha, era um porto de relativamente fácil acesso, no qual muitos comerciantes de todas as nacionalidades negociavam a doce mercadoria, e se tornara de difícil controle para a Coroa. Isso, em muitas oportunidades, levava a um descontrole no abastecimento que afetava as cotações do produto. Além disso, o terreno do arquipélago era pedregoso e as propriedades tinham tamanho limitado, o que dificultava a cultura mais extensiva da cana. Convinha buscar novas terras que se prestassem a produzir o açúcar que era usado ao natural ou em conservas que encantavam, sobretudo, os flamengos.

A busca por novas áreas para desenvolver a cultura da cana-de--açúcar foi um dos fatores que levaram a Coroa portuguesa a procurar um modelo de povoamento para o Brasil, que tinha, ao longo de toda a sua costa, as condições favoráveis para que a gramínea vicejasse: altas temperaturas, solos ricos e fartura de água. Regiões como São Vicente, Pernambuco e o Recôncavo Baiano são muito rapidamente ocupadas por engenhos e vastas plantações.

A expedição de Martim Afonso que aportou em 1531 no Brasil, como se sabe, trouxe mudas de cana e especialistas agrícolas. E, muito provavelmente, trouxe um dos primeiros alambiques do Novo Mundo, talvez um que já tivesse produzido aguardente de uva, mel ou cana nas Canárias, ponto de passagem da esquadra do fidalgo e provável origem das primeiras mu das de cana dessa primeira iniciativa organizada de produção canavieira em larga escala no Brasil.

Numa das três regiões citadas acima – mais provavelmente São Vicente , se levarmos em conta o caminho feito pela cachaça nas décadas seguintes –, o processo da destilação que os ibéricos aprenderam com os árabes produziu, pela primeira vez, a aguardente de cana no Brasil.


Naquele momento, nada diferenciava aquela aguardente de outros destilados de cana que surgiam em outros pontos da América – como o rum, na Nova Inglaterra e no Caribe – ou das ilhas do Atlântico – o grogue de Cabo Verde. A cachaça só ganharia seu nome definitivo – de origem espanhola – e sua especificidade alguns séculos depois.

Claro que essa origem foi mitifi cada em lendas como a do melado esquecido no fogo e depois escondido do feitor, que fermentou e, após evaporar, condensou-se no teto do engenho e gotejou, dando origem à denominação “pinga”. Pior ainda a potoca que afirma ser o termo “aguardente” advindo de uma suposta ardência do líquido em contato com as feridas nas costas do escravo vítima do látego, quando se sabe que a expressão latina aqua vitae era de largo uso em todo o mundo latino ainda no Império Romano.

De todo modo, a cachaça firmou-se muito rapidamente no gosto popular dos “negros da terra” (índios), africanos e portugueses de estirpe popular ou degredados que formaram os primeiros núcleos de povoamento nas terras brasileiras. Era barata, sendo feita com uma pequena parcela do caldo ou da rapadura derivados da cana farta nas grandes plantações, e de relativamente fácil produção. Enquanto os fidalgos se entregavam ao vinho e à bagaceira vindos do Reino, o populacho das três raças se consolava com a cachaça enquanto o Brasil ia se formando.

Para dar conta desse consumo, as dezenas de engenhos em volta da baía de Todos os Santos e os de Pernambuco produziam a sua jeribita. Mas uma cidade se tornava sinônimo de cachaça: Paraty. Ali, os vicentinos que, segundo a hipótese mais provável, começaram a produção de cachaça em meados do século XVI nas terras do chamado Engenho dos Erasmos, fincaram no fim desse mesmo século ou no início do seguinte os primeiros alambiques que fi zeram a glória da bebida, aperfeiçoando suas técni-cas de produção. O porto do qual os navios partiam para a África e para o Reino e tropeiros e colonizadores se internavam na direção das Minas chegaria a ter, no século XVIII, em torno de cem fábricas de cachaça em funcionamento.
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Em Paraty, negros chegavam da África e eram desembarcados e levados para a engorda no saco de Mamanguá, enquanto os navios eram carregados de cachaça – o pagamento preferido dos comerciantes da Costa da Mina e de Angola. Naquele momento, os africanos haviam se tornado também grandes consumidores de cachaça – o único destilado que conheciam –, o que muito preocupava a Coroa portuguesa.

Acossada pela concorrência da cachaça no Brasil e na África, e com o apoio de senhores de engenho que veem a cana dos pequenos produtores desviada da função de matéria-prima do açúcar para a valorizada cachaça, Lisboa baixa em 13 de setembro de 1649, a proibição do fabrico do “vinho de mel” em todo o Brasil (em 1635, uma primeira lei nesse sentido não havia “pegado” e fora esquecida).

O protesto dos fazendeiros, sobretudo os da província do Rio de Janeiro, que abasteciam Angola de cachaça até por não conseguir competir com o açúcar de melhor qualidade de Pernambuco, é for-te e a Coroa responde retirando a proibição, aumentando taxações, tornando a proibir e estabelecendo diversos obstáculos e regulações. Em 1659, o comércio de aguarden-te sob qualquer forma, é vetado, gerando protestos que culminam com a chamada Revolta da Cachaça, em 1660, quando, liderados por fazendeiros da região de São Gonçalo, o povo do Rio de Janeiro depõe o governador, então em viagem a São Paulo, obrigando a Câmara a dar posse a outro fidalgo.

A rebelião é sufocada com certa facilidade, depois que os paulistas negam seu apoio aos revoltosos, e seu líder, o produtor de cachaça Jerônimo Barbalho, é enforcado. Mas a Coroa não apoia a decisão do governador Salvador Correa de Sá e Benevides. Ele acabaria sendo chamado de volta a Lisboa e processado, enquanto a produção da cachaça, para deleite de fazendeiros, comerciantes e do povo em geral, era liberada sem restrições, “a fim de evitar novos problemas”.


A primeira rebelião popular da nascente nacionalidade brasileira contra o domínio português de que se tem notícia prefaciou o papel de símbolo da nacionalidade com que a cachaça seria brindada ao longo dos séculos seguintes. Com a descoberta do ouro, a branquinha subiria a serra do Mar e encontraria seu território definitivo: as Minas Gerais.

A cachaça chegou às Minas com os tropeiros e bandeirantes, através do Caminho Velho, que já existia no fi m do século XVII e ligava Paraty a Guaratinguetá e, daí, à região aurífera da Vila Rica. Também subiu o rio São Francisco, com os baianos que se internaram no sertão rosiano. Em 1715, o governador da província, Brás Baltazar da Silveira, já dá início à perseguição ao líquido brasileiro, proibindo a construção de novos alambiques, sob a alegação de que a bebida “inquieta os negros” e causa “dano irreparável ao Real Ser-viço e à Fazenda” – pura reserva de mercado para os vinhos e bagaceiras do Reino. A lei é tão inócua quanto as anteriores e outras que se sucederão ao longo do século para deter o avanço dos alambiques, que vão se tornando parte do equipamento básico das fazendas mineiras.

Enquanto as minas escasseavam em fins do século XVIII, os alambiques se multiplicavam para desgosto da Coroa. Durante a Inconfidência, ela será usada para brindes, por exemplo, no banquete oferecido pelo Padre Toledo em outubro de 1788 após o batizado dos filhos de Alvarenga Peixoto e Bárbara Helio-dora – considerada a primeira reunião inconfidente na Comarca do Rio das Mortes, hoje Tiradentes.

A própria família de Tiradentes produzia – e produz – cachaça, no engenho Boa Vista, na atual cidade de Xavier Chaves. O padre Domingos da Silva Xavier, irmão do alferes, cuidava do alambique. Já no território da lenda, o último pedido do futuro mártir da nacionalidade basileira teria sido: “Molhem minha goela com cachaça da terra”.

A ligação lendária entre o alferes e a bebida faz todo o sentido dentro da construção dos símbolos da nacionalidade brasileira do século XIX, a reboque da Independência. Nesse período, a cachaça atinge seu ponto mais elevado como parte da vida nacional. Em 1863, são 150 os alambiques em funcionamento apenas em Paraty, fornecendo, inclusive, para o Palácio Imperial, onde a preferência do conde d’Eu – que se casaria com a princesa Isabel no ano seguinte – seria glosada, mais tarde, por Oswald de Andrade: “No baile da Corte/ Foi o Conde d’Eu quem disse/ Pra Dona Benvinda/ Que farinha de Surui, Pinga de Paraty e fumo de Baependi/ É comê, bebê, pitá e caí.”

Recebida em palácio e cantada pelos nobres, tal era o prestígio da cachaça naquele século que foi admitida até nas cerimônias religiosas, como atesta o Baile da Aguardente, recolhido por Melo Morais Filho e mencionado por Câmara Cascudo no seu Prelúdio da cachaça. Segundo o folclorista, a penetração na religiosidade – a mais profunda das representações de um povo – comprova o elevado status que a cachaça atingiu naquele momento.

Mas a segunda metade daquele século testemunharia a ascensão da burguesia e, com ela, aquilo que Nelson Werneck Sodré denominou a “ideologia do colonialismo” – a afinidade entre a burguesia nascente brasileira e a europeia, com a subordinação material e cultural da primeira pela segunda. O mais divulgado dos “preconceitos justificatórios” difundidos por essa ideologia, vulgarizado no período, é o da superioridade racial das raças europeias, particularmente nórdicas, sobre os de outras raças, especialmente negros e indígenas.


A prosódia brasileira é rejeitada – nos teatros, adota-se o modo de falar lisboeta –, e os burgueses brasileiros são os mais numerosos assinantes da Revue des Deux Mondes fora da França. E ganha espaço a ideia de um Brasil “civilizado” (o litorâneo, de pretensões cosmopolitas) em oposição ao atrasado – o interiorano, território do índio, do cabra e da cachaça.

Estreitamente ligada à história da escravidão, a cachaça é rejeitada como bebida de negro, de caboclo (os índios desgarrados que iam para a cidade em condição de miséria), de cabra (o trabalhador do canavial nordestino). Mas, como diz Câmara Cascudo, ela asseguraria sua sobrevivência, “ficando com o povo”.

E é nessa condição que ela aparece em mais um episódio da história brasileira. Numa noite de novembro de 1910, o marinheiro Marcelino Rodrigues tenta embarcar no navio Minas Gerais com duas garrafas da branquinha. Um ato de indisciplina, por certo, repreendido por um cabo enérgico, que apreende as garrafas. Marcelino reage a navalha, mas é preso e recebe, como punição, 250 chibatadas – dez vezes mais do que era o disposto pelo regulamento.

O episódio precipitou a longamente planejada Revolta da Chibata, imortalizada na canção de João Bosco e Aldir Blanc Mestre-sala dos mares. A letra genial de Aldir homenageia o líder do movimento que pretendia acabar com os castigos físicos na Marinha brasileira: João Cândido. Filho de escravos, o marujo comandou os quatro encouraçados que ameaçaram bombardear a capital da recém-instituída República caso suas reivindicações não fossem aceitas. Seis anos antes, o “almirante negro” tinha recebido também uma punição por levar cachaça a bordo: suspensão do soldo.

A cachaça era o consolo para a vida dura daqueles homens para quem a abolição, a República e a cidadania não haviam chegado de todo. E, assim ela atravessou o século XX: como a amiga do povo, cantada pelos poetas populares e rejeitada por aqueles que viam no que era mais profundamente brasileiro o sinal do atraso.

Mas mesmo esses setores acabam, no fi m do século, por se sentirem ultrapassados diante da vitória retumbante da cachaça, sobrevivente às perseguições seculares e entronizada como símbolo nacional. A bebida se valoriza, ganha qualidade, aprimora suas técnicas de envelhecimento, e seu consumo começa a não ser visto mais como coisa da “ralé”.

No século XXI, o Brasil e o que seja brasileiro entram na moda e a cachaça vai junto, ocupando cada vez mais espaços. Agora, testemunha-se a chegada dos grandes grupos multinacionais (a Diageo, com a compra da Ypióca, e a Campari, com a aquisição da Sagatiba) que almejam, junto com empresários nacionais e o governo brasileiro, agora de todo convencidos dos valores da bebida, levá-la a outro patamar, abrindo um novo capítulo nessa história que se confunde com a da superação e resistência do povo brasileiro: a de potência mundial.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Estudioso Reconstrói Capitanias Hereditárias e Afirma que Livros Escolares Estão Errados

Membro do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, o engenheiro Jorge Cintra fez uma descoberta que pode mudar os livros escolares. Em um artigo recente, ele contesta o mapa das Capitanias Hereditárias eternizado por Francisco Adolfo de Varnhagen, considerado o pai da historiografia nacional, e propõe mudanças significativas no seu desenho. A partir de documentos da época, Cintra, que leciona na Escola Politécnica da USP, conseguiu reconstruir com maior exatidão os limites das porções de terra doadas, entre 1534 e 1536, pela Coroa Portuguesa a comerciantes e nobres lusitanos.

Mapa da divisão territorial das Capitanias Hereditárias feito por Jorge Cintra

A técnica evoluiu muito, os instrumentos de medição também. Para a cartografia, isso proporciona maior rigor na obtenção de resultados. E, sobretudo, acho que o professor Cintra, por ser engenheiro, teve uma exatidão que talvez um historiador não tivesse. O grande mérito dele foi ter verificado um erro de base, um erro de interpretação - elogia o geógrafo Jurandyr Ross, responsável por romper um paradigma semelhante ao propor uma nova classificação para o relevo brasileiro.


- Coloquei tudo em dúvida. Descobri um erro ao Sul e resolvi conferir todo o resto. Logo percebi que, de fato, o Norte não estava bem resolvido. Havia capitanias finas demais, era uma incógnita - explica.O sistema de Capitanias Hereditárias, que já havia sido utilizado com relativo sucesso na África, dividiu o território em 15 partes e pretendia viabilizar a exploração das riquezas do “Novo Mundo”. As terras tinham como limites o Oceano Atlântico, a Leste, e o Tratado de Tordesilhas, a Oeste. Após recuperar, analisar minuciosamente as cartas de doação e de notar detalhes que passaram despercebidos por Varnhagen em mapas da época, Cintra assegura que, no Norte, a divisão das fronteiras não foi feita de acordo com paralelos, e sim através de meridianos.


De fato, as fronteiras que constam no mapa do Atlas Histórico Escolar do MEC, desenhado por Manoel Maurício de Albuquerque sob forte influência das definições de Varnhagen, mostram territórios extremamente estreitos no Norte. Para Cintra, frases contidas nos documentos de doação são as chaves para a solução do problema. Por exemplo, o documento destinado a Antonio de Cardoso de Barros diz: “As quais quarenta léguas se estenderão e serão de largo ao longo da costa e entrarão na mesma largura pelo sertão e terra firme adentro”.

- Se as divisas fossem para Oeste, o rei estaria doando um pedaço de mar. Isso é pouco lógico. Ora, o único jeito de se entrar sertão adentro é em direção ao Sul - sustenta.
Na mesma carta, há também uma cláusula de conflito. Ela previne a possibilidade de altercação sobre as limitações das divisas com os capitães vizinhos.

Mapa tradicional das Capitanias Hereditárias, como
               constam nos livros didáticos

- Essa cláusula de compatibilidade não existe em nenhuma outra carta de doação. Como poderia haver conflito se as linhas fossem todas paralelas? - sentencia.
Finalmente, Cintra se valeu de uma observação sagaz do mapa de Bartolomeu Velho, de 1561. Nele, apesar de não haver divisas desenhadas, os nomes das capitanias ao Norte estão escritos em blocos separados de acordo com linhas imaginárias verticais.
- Se a divisão fosse horizontal como se pensava, o autor não precisaria “quebrar o texto” em duas ou três linhas e nem valer-se de abreviações. Ele poderia escrevê-los por extenso na mesma linha - pontua.

Além disso, no novo desenho proposto por Cintra, existem terras não distribuídas no Norte. Segundo o pesquisador, elas ficaram de fora das doações realizadas pela Coroa. Três capitanias — Maranhão, Rio Grande do Norte e São Vicente — também foram divididas em lotes. Por fim, o primeiro lote de São Vicente também teve divisas modificadas.
Para Cintra, o mapa de Varnhagen tem incorreções, pois o estudioso, em “História Geral do Brasil” (1854), recorreu a um desenho de Luis Teixeira onde as capitanias são representadas em 1586, mais de 50 anos após o início da divisão. Nele, a situação já não era mais a mesma. Por isso, o professor ressalta a importância de se duvidar de concepções tidas como definitivas:

- O artigo mostra uma coisa importante: até um entendimento que já vem de 160 anos pode ser derrubado. Ele deixa essa mensagem. Devemos colocar em dúvida outras coisas. Precisamos olhar novamente para os documentos cartográficos, voltar às fontes. Podemos ir mais fundo nos problemas.
Para Jurandyr Ross, que participou da banca de admissão de Cintra na Escola Politécnica, a descoberta é importante para o ensino de História no Brasil.

- O artigo me surpreendeu muito e causará um impacto significante para os livros escolares, que precisão corrigir esses mapas logo. Vamos ensinar uma História cada vez melhor - empolga-se.
Renato Franco, professor da disciplina Brasil Colonial no Departamento de História da UFF, elogia o artigo, mas não vê grandes mudanças na maneira com que o período pode ser enxergado pelos estudiosos do assunto.

Francisco Adolfo de Varnhagen

- O texto é muito interessante. No entanto, não traz grandes impactos para a História do Brasil Colonial. Embora tenha sido completamente extinto apenas no século XVIII, o sistema de Capitanias Hereditárias rapidamente perdeu a força diante do desinteresse de boa parte dos donatários e do assédio de outras potências. Em 1549, a Coroa portuguesa mudou de estratégia e, progressivamente, as Capitanias Hereditárias foram perdendo força como forma de organização político-administrativa. O grande mérito do artigo é propor uma discussão sobre as eventuais imprecisões cartográficas, mas muda pouco no que diz respeito à nossa forma de enxergar a História do Brasil Colonial como um todo - opina.

Cintra concorda com Franco. Para ele, o período já “foi muito bem estudado” pelos profissionais brasileiros. Sobre a alteração dos livros escolares, diz não ter muita pressa. O cartógrafo explica que no meio científico, assim como na própria História, as coisas costumam levar tempo para serem completamente aceitas e solidificadas.
- A comunidade científica tem que ter calma. O primeiro reconhecimento foi ter sido publicado por uma revista de qualidade (“Anais do Museu Paulista”, da USP). Significa que revisores e editores de lá puseram a mão no fogo pelo meu trabalho. A partir daí, cada autor de livro didático tem que tomar conhecimento do artigo e se convencer dele. Então, vai começar a fase de transição - finaliza.

Fonte: O Globo